Ensaio de Hermann Hesse sobre Música, um texto raro; o livro do
qual o retirei já esgotou a edição há bastante tempo. E por isso há alguns
anos eu mesmo o copiei, digitando-o, para oferecer aos amigos. E
infelizmente hoje Hesse é pouco lembrado como ensaísta. Então, guarde-o com
carinho, mas antes imprima algumas cópias e distribua para a turma da Imagem
Musical. São palavras emocionadas não de um músico, mas de um escritor e poeta
sensível que amava música.
Abração
do Ailton Rocha
MÚSICA
(ensaio)
Hermann Hesse
Estou
sentado, no meu modesto lugar, no canto da sala de concerto de que tanto gosto,
por não ter ninguém sentado atrás de mim. O suave alvoroço e a profusa
iluminação da sala repleta invadiram-me com uma doce e suave alegria. Aguardo o
começo do concerto, lendo o programa, e sofro a doce tensão que, daqui a pouco,
a batuta do regente elevará ao auge, mas que, no momento seguinte, o crescente
primeiro som da orquestra vai aliviar e libertar. Não sei ainda se esse som
será alto e excitante como os sons do baile estival dos insetos, em uma noite
de julho, ou se será o de instrumentos de sopro, surdo e sufocante, em
contrabaixos abafados. Não conheço a música que vou ouvir, mas há em mim um
pressentimento e uma secreta busca, um mundo de desejos para o que vou ouvir,
e, também, já um antegozo e uma segura confiança de que ouvirei boa música,
pois amigos me haviam recomendado o concerto.
Na
frente da grande sala branca, postaram-se as “falanges da batalha”. Altos e erectos,
os contrabaixos, oscilando levemente com suas “gargantas de girafa”.
Obedientes, inclinam-se os meditativos violoncelistas sobre as suas cordas. O
tempo para a afinação dos instrumentos está preste a terminar. Um derradeiro
toque experimental de uma clarineta ecoa, triunfal e hesitantemente, aos nossos
ouvidos.
Agora
chegou o delicioso momento: o regente, trajado de preto, empertiga-se; as luzes
da sala apagam-se, de repente; sobre a estante reluz, fantasticamente iluminada
por uma invisível lâmpada, a partitura branca. Nosso regente, que todos
estimam, já deu o sinal com a batuta. Levanta e abre os braços. Empertiga-se
mais ainda na concentrada tensão do instante. O regente joga agora a cabeça
para trás. Mesmo de costas, adivinha-se o poder de comando que emana do
relampear de seus olhos. Suas mãos se movem como pontas de asas. Em pouco
tempo, curtas, ligeiras e espumosas ondas, saídas das cordas dos violinos,
inundam a sala, a atmosfera e o meu coração. Dissipam-se a assistência e a
sala, o regente e a orquestra, estremece e dissipa-se o mundo inteiro, para ser
recriado, sob novas formas, na minha consciência. Ai do músico que tentasse,
agora, construir um mundo pequeno e mesquinho, um mundo irreal, sofisticado,
mentiroso, para nós que estamos sob o encanto da esperança!
Mas
isso não acontecerá, pois há um mestre em ação. Do vazio e do abismo do caos
ele lança uma onda ao ar, largo e poderoso. Acima dela surge, logo, um
penhasco, uma ilha solitária, um inquieto refúgio acima do abismo dos mundos. Sobre
o penhasco vê-se, em pé, um ser humano, o ser humano solitário no infinito. Na
impassível solidão, ressoa o seu coração palpitante com um lamento alentador.
Vemos aqui, de pé, um homem, um mestre, certamente, librando-se, hesitante,
sobre o abismo, um homem em cuja voz pulsa o medo.
Mas
eis que o mundo soa ao seu encontro. A melodia anima o incriado, a forma
penetra o caos, o sentimento ressoa na infinidade do espaço. Surge o prodígio
da arte, a repetição da criação. Vozes respondem à pergunta solitária, olhares
luzem ao encontro dos olhos solicitantes, um coração pulsátil e a possibilidade
de amor irrompem timidamente da solidão. Na alvorada de sua jovem consciência,
o primeiro homem torna posse consentida da Terra. Desabrocha nele o orgulho e
alegre e profunda ternura. A voz cresce e domina, proclamando a mensagem do
amor.
Sobrevém
o silêncio; terminou a primeira parte do concerto. E voltamos a ouvi-lo, o ser
humano, cuja existência e cuja alma nos compreendem. A criação continua a
processar-se, trava-se a guerra, sobrevêm a pobreza, a dor e o sofrimento.
Postura erecta, lança do regente os seus lamentos, que nos compungem o coração.
Sofre por um amor não retribuído, mas supera o terrível abandono pela
inteligência e o autoconhecimento. Sua música, mergulhada na dor, manifesta-se
em sons plangentes. A trompa clama lastimosa, em desespero. O violoncelo chora,
tímido. A consonância de muitos instrumentos congela-se em tristeza, gélida e
pálida, arrepiante e desesperada. Da noite do sofrimento elevam-se tristes e
frias melodias, recordações de alegrias e felicidades passadas, como
constelações obscuras ou desconhecidas.
Mas a
última parte tece da tristeza um fio dourado de consolo e resignação. Como o
oboé escala a dor e, vertendo todas as lágrimas, se aquieta no repouso! As
pelejas terminam em bela serenidade. As turvações se diluem e, de repente,
ficam tranquilas e puras. As dores se refugiam, com pudor, em um sorriso
redentor. O desespero transforma-se com humildade, em compreensão da
necessidade. A alegria e a ordem retornam, engrandecidas e mais promissoras.
Encantos e belezas esquecidos voltam para participar de uma nova dança de roda.
E tudo se harmoniza novamente, até a aflição e o prazer, e sobe, em grandes
coros, cada vez mais para o alto. Céus se abrem e deuses recebem, com bênçãos e
consolos, as impetuosas falanges dos anseios humanos. Reconciliado, conquistado
e pacificado, flutua o mundo, um doce instante, durante seis compassos, em
acabada perfeição, em si mesmo feliz e perfeito! E chegamos ao fim do concerto.
Aturdido ainda pela profunda ressonância, procuramos um alívio, batendo palmas.
E, no ruído de minutos de exaltação e das palmas, torna-se-nos compreensível,
vemos confirmado por nós e pelos outros, que acabamos de viver horas belas e grandiosas.
Alguns
músicos “profissionais” dizem ser condição falsa, de amadorismo, quando o
ouvinte, durante uma audição, “vê”, pictoricamente, a música: com paisagens,
pessoas, mares, tempestades, horas do dia, estações do ano. Eu, que sou tão
leigo que não chego a distinguir claramente a tonalidade uma peça musical, a
mim, parece-me bom e natural quando chego a sentir, pictoricamente, a música.
Além do mais, já encontrei a interpretação “pictórica” mesmo entre músicos
qualificados. É natural que, na audição de hoje, nem todos os ouvintes teriam
visto os quadros que eu vi: a grande onda, o penhasco solitário, etc. Acredito,
no entanto, que essa música devia, em cada ouvinte, produzir a mesma imagem de
um crescimento e ser orgânicos, de um nascer, lutar e sofrer, e, finalmente, da
vitória. Um bom caminhante poderia muito bem ter visto as imagens de uma longa
e perigosa escalada nos Alpes; um filósofo, o despertar de sua consciência, o
seu devir e o seu sofrer até ao estado perfeito da não-resistência; um justo, o
caminho de uma alma em busca de Deus, afastando-se Dele, para reencontrá-lo em
si, maior e purificado. Ninguém, todavia, que tivesse ouvido, atento, a
audição, poderia desconhecer a curva dramática dessa imagem, a do caminho da
criança para o adulto, do devir ao ser, da felicidade pessoal à reconciliação
com a vontade do universo.
Em
romances e folhetins satíricos e humorísticos, tenho, às vezes, encontrado
escarnecidos como tipos miseráveis e deploráveis alguns frequentadores de
concerto: o homem de negócios que, durante a marcha fúnebre da Heróica
de Beethoven, pensa em seus papéis de crédito, a dama rica que assiste a um
concerto de Brahms, para poder mostrar suas jóias; a mãe que, sob os sons da
música de Mozart, leva a filha núbil ao mercado; e outras figuras do mesmo
naipe. Sem dúvida, existem essas pessoas, o que explica a sua frequência nas
obras literárias.
A
mim, todavia, pareceram sempre inconcebíveis e inexplicáveis. Que se possa ir a
um concerto com a mesma disposição com que se vai a uma reunião social ou a um
ato público: indiferente e apático ou, calculadamente, com propósitos egoístas,
ou frívola e orgulhosamente, consigo entender, pois é humano e, por isso,
motivo de zombaria. Eu mesmo, não podendo fixar os dias de concerto à minha vontade,
já tenho ido sem estar disposto a concertos, assistindo-os cansado ou doente,
aborrecido ou preocupado.
Mas
que haja pessoas capazes de ouvir uma sinfonia de Beethoven, uma serenata de
Mozart, uma cantata de Bach – quando a batuta começa a dançar e os sons a fluir
– com indiferença, com a alma inalterada, sem emoção e elevação, sem
sobressalto, acanhamento ou tristeza, sem dor ou sem arrepios de alegria –
isso, eu nunca soube compreender. Dificilmente existe alguém que possa
entender, menos do que eu, as coisas técnicas – mal sei ler as notas musicais!
– mas que nas obras dos grandes músicos, como em todas as artes, se condensa,
potencializada, a vida humana, existe o que há de mais sério e importante para
mim e para todo mundo, isso deveria ser percebido mesmo pelo mais modesto dos
leigos! Nisso reside exatamente o segredo da música, que só nos exige a alma,
porém integralmente. Não solicita a nossa inteligência, a nossa cultura.
Representa, acima dos idiomas e das ciências, em configurações multisignificativas,
mas em essência sempre evidentes, apenas a alma do ser humano. Quanto maior for
o mestre, tanto mais ilimitada a validade e profundidade de sua contemplação e
vivência. E cumpre não esquecer: quanto mais perfeita a forma puramente
musical, tanto mais imediata a sua doce ação sobre a nossa alma. Não importa
que um mestre aspirasse somente a alcançar a mais forte e mais rigorosa
expressão para as inclinações de sua alma ou que tivesse perseguido,
afastando-se de si mesmo, ansiosamente um sonho de pura beleza; em ambos os
casos, a sua obra deve sem mais nem menos encontrar uma compreensão imediata. O
aspecto técnico da obra há de ser discutido depois. Se Beethoven, em qualquer
de suas peças, não colocou as notas para violino ao fácil alcance do intérprete;
se Berlioz, em algum lugar, com a entrada de trompas, houvesse buscado um
efeito audacioso, se o efeito poderoso, deste ou daquele trecho, se deve a um
“ponto de órgão” ou, quanto ao timbre, ao abafamento do som dos violoncelos, ou
a qualquer outro recurso, é bom e útil sabê-lo mas, para o gozo da música, esse
conhecimento é naturalmente desnecessário.
E
acredito até que, ocasionalmente, um leigo consiga ter uma opinião mais
acertada e mais pura sobre a música que alguns músicos. Existem não poucas peças
que, como um jogo agradável mas pouco importante, passam ruidosamente pelos
ouvidos do leigo, sem lhe causar grande impressão, enquanto sua perfeição
técnica entusiasma o iniciado. Assim, julgamos também nós, os literatos,
algumas obras poéticas, onde o leigo não encontra encanto algum. Mas não
conheço nenhuma grande obra de artista genial, que exerça apenas o seu encanto
entre os entendidos. Além do mais, somos nós, os leigos, tão felizes, que
conseguimos gozar uma grande obra, mesmo se a execução for, em parte,
imperfeita. Levantamo-nos com os olhos úmidos e, no âmago de nossa alma, nos
sentimos embalados, exortados, acusados, pacificados, reconciliados, enquanto o
profissional critica o andamento ou deixa de alegrar-se, devido a uma entrada
extemporânea.
Certamente,
desfruta o entendido também de prazeres, perante os quais nós, os não versados,
falhamos. Contudo, exatamente as raras, exímias execuções quanto à pureza
sonora: a consonância de um quarteto de corda de excelentes velhos
instrumentos; o encanto da voz de um excelente tenor; a voz cheia e quente de
um contralto é sentida por um ouvido sensível, sem a necessidade do
conhecimento teórico, elementarmente. Essa acuidade de percepção depende da
sensibilidade sensorial, não da cultura, embora o desfrute sensorial possa ser
ensinado. Algo parecido ocorre com a produção dos regentes. Nas obras de alto
valor, o nível de uma produção não será ditada apenas pela mestria técnica do
regente de orquestra, e, sim, muito mais, pela sua sensibilidade humana, sua
profundidade espiritual, sua seriedade pessoal.
Que
seria de nossa vida sem a música? Mas por que lembrar logo os concertos? Em mil
casos basta-nos dedilhar umas notas no piano, assobiar, cantar ou murmurar uma
melodia ou, mesmo apenas lembrar alguns compassos inesquecíveis. Se, a mim ou a
qualquer pessoa com dons musicais, tirassem, proibissem ou apagassem
violentamente da memória, por exemplo, os corais de Bach, as árias da Flauta
Mágica e do Fígaro, sentiríamos isso como se nos tivessem extraído um
órgão, como a perda parcial ou até total de um de nossos sentidos. Quantas
vezes, nas horas de desalento, quando mesmo o céu azul ou a noite estrelada não
nos conseguem alegrar e não encontramos um livro de poesia que nos conforte,
quantas vezes, surge, então, dos tesouros velados da memória, uma canção de
Schubert, um compasso de Mozart, o som de uma missa, uma sonata – não sabemos
mais onde e quando a ouvimos – resplandecendo fulgurantemente a nossa alma,
despertando-nos, mitigando, com mãos amorosas, as nossas fundas feridas. Que
seria de nossa vida sem a música?
***
1877-1962 |
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