Ludwig Van Beethoven - 1770-1827
Nada mais que Beethoven! Nada mais que a Sinfonia que definitivamente mudou os rumos da História da Mùsica. A "Eroica!"
Com a palavra o crítico e jornalista:
*H.L.MENCKEN*
BEETHOVEN
Beethoven foi um daqueles homens cuja estatura, vista em retrospecto, só parece crescer. Quantos movimentos não surgiram para pô-lo definitivamente na prateleira? Pelo menos uns dez nos cem anos desde a sua morte.
Houve um em Nova York, em 1917,
lançado por críticos bocós e estimulado pela febre da guerra: pregava que o
lugar de Beethoven seria tomado por profetas das novas luzes, como Stravinski.
O saldo daquele movimento foi o de que a melhor orquestra da América foi a
falência – e Beethoven sobreviveu sem um arranhão.
Claro que o século XIX não
foi deficiente em grandes músicos. Produziu Schubert, Schumann, Chopin, Wagner
e Brahms, para não citar hordas inteiras de Dvoráks, Tchaikovskis, Debussys,
Verdis e Puccinis. Nenhum deles nos deu nada melhor do que o primeiro movimento
da Heróica. Aquele movimento, o primeiro desafio da nova música, continua a ser
a última palavra. É a peça mais nobre de música absoluta já escrita em forma de
sonata e é também a mais nobre em música descritiva. Em Beethoven, a distinção
entre as duas formas era puramente imaginária. Tudo que ele escreveu era, de
certa forma, descritivo, incluindo até as primeiras duas sinfonias, e tudo era
música absoluta. Deve ter sido uma brincadeira dos deuses, a de opor Beethoven,
em seus primeiros dias de Viena, ao papa Haydn.
Haydn era inegavelmente um
gênio e, depois da morte de Mozart, não tinha qualquer razão aparente para
temer um rival. Se ele não criou realmente a sinfonia como a conhecemos hoje,
pelo menos enriqueceu a forma com suas primeiras autênticas obras-primas – e
não com uma ou duas, mas literalmente com dezenas. As mais complexas harmonias
pareciam jorrar dele como petróleo de um poço. Mais ainda, sabia como
dominá-las, porque era um mestre da arquitetura musical. Mas, quando Beethoven
entrou em cena, o velho Haydn teve de descer um degrau. Era uma gazela contra
um touro: com um bramido, o combate**terminou.
Os músicos costumam ver neste
combate uma mera disputa entre técnicos. Admitem que a habilidade e
engenhosidade de Beethoven eram muitíssimo maiores – que tinha um controle mais
seguro sobre seu material, mais ousadia e criatividade, um conhecimento muito
maior da dinâmica, dos ritmos e dos matizes –, em suma, uma musicalidade
tremendamente superior. Mas não foi isto que o tornou tão superior a Haydn –
porque este também tinha suas superioridades: por exemplo, seu constante estado
de alerta inventivo, sua capacidade para escrever melhores canções. O que alçou
Beethoven acima do velho mestre foi a sua dignidade como homem.
Os sentimentos
expressos por Haydn pareciam os de um pároco de aldeia, de um corretor da Bolsa
ou de um violista carinhosamente enternecido por Kulmbacher. Quando chorava,
era com as lágrimas de uma mulher que acaba de descobrir uma nova ruga; quando
se mostrava feliz, era com a alegria de uma criança na manhã de Natal. Em
contrapartida, os sentimentos que Beethoven punha em sua música eram os
sentimentos de um deus. Havia algo de olímpico em suas iras e rosnados; e,
quando gargalhava, era com um toque do fogo do inferno. Literalmente, não há um
traço de vulgaridade em toda a sua obra. Nunca é doce ou romântico; nunca
derrama lágrimas convencionais; nunca toma atitudes ortodoxas. Em suas
passagens mais ligeiras, há a imensa e inescapável dignidade dos velhos profetas.
Ele se preocupa, não com as agonias transitórias do amor romântico, mas com a
eterna tragédia do homem. Ê um grande poeta trágico e, como todos os grandes
poetas trágicos, obcecado pela inescrutável falta de sentido da vida.
Da "Heróica "em diante, raramente desligou-se deste tema.
Ele ruge através do primeiro movimento da "Dó Menor "e
chega à sua estupenda declaração final na "Nona". Tudo isto era
novo em sua época, causando murmúrios de surpresa e até indignação.
O passo
dado, da Júpiter de Mozart para o primeiro movimento da Heróica, foi
perturbador; os vienenses começaram a ficar inquietos em suas primeiras filas.
Mas havia um entre eles que não se inquietou, e chamava-se Franz Schubert.
Consulte o primeiro movimento da sua "Inacabada "ou o lento
andamento da Trágica e constate como o exemplo de Beethoven foi rapidamente
seguido – e com que gênio. Houve um longo hiato depois disto, até que o dia 6
de novembro de 1876 amanheceu em Karlsruhe e, com ele, veio a primeira
apresentação da Dó Menor de Brahms. Mais uma vez os deuses tinham entrado numa
sala de concerto – e entrarão de novo quando nascer outro Brahms, não antes,
porque nada pode sair de um artista que já não esteja no homem.
O que minimiza
a música e todos os Tchaikovskis, Mendelssohns e Chopins? Ê o fato de que é a
música de homens vazios. Bonita, sim, e freqüentemente – à sua maneira. Ê
infinitamente engenhosa, profissional e tem certas idéias musicais
encantadoras. Mas é tão oca, no fundo, quanto uma bula papal. Ê música de
homens de segunda classe.
Beethoven desprezava todos estes artifícios: não
precisava deles. Seria difícil pensar em outro compositor, mesmo de quarta
classe, que trabalhasse com um material temático de tão pouco mérito
intrínseco. Apropriava-se de canções onde as encontrava; construía-as a partir
de fragmentos de motivos folclóricos; à falta do resto, contentava-se com uma
simples frase ou algumas notas. Via tudo isto como material em estado bruto;
seu interesse se concentrava em como usá-lo. Era a este uso que ele emprestava
o impressionante poder do seu gênio. Sua engenhosidade começava por onde outros
haviam parado. Suas estruturas mais complicadas retinham a clareza abrangente
do Parthenon. E, delas, tirou uma espécie de sentimento que nem os gregos
poderiam igualar; Beethoven era preeminentemente um homem moderno, sem o menor
traço de barbárie. Em sua música havia o alto ceticismo característico do
século XVIII, mas ele lhe insuflou o novo entusiasmo, a nova determinação de
desafiar e bater os deuses, típicos do século XIX. Quanto mais envelheço, mais
me convenço de que nunca houve um fenômeno tão portentoso na história da música
quanto a primeira apresentação pública da "Heróica", a 7 de
abril de 1805. Os redatores do programa camuflaram a obra com tantas camadas de
especulações banais que seus méritos intrínsecos quase foram esquecidos.
Seria
ela dedicada a Napoleão I? E, se era, a dedicatória seria sincera ou irônica? E
daí? – quero dizer, e daí, para quem não seja surdo? Ela poderia ter sido
dedicada a Luís XIV, a Paracelso ou a Pôncio Pilatos, sem fazer a menor
diferença. O que a torna digna de discussão, hoje e sempre, é o fato de que,
logo na primeira página, Beethoven atirou seu chapéu na arena e proclamou sua
imortalidade. Sem concessões, sem pontes fáceis com o passado. A Segunda
Sinfonia fica quilômetros para trás. Nascia uma nova espécie de música, cheia
de desafios. Sem introduções melífluas ou conciliatórias; sem rodeios
preparatórios para levar a platéia no bico e dar tempo ao regente para
encontrar o seu lugar na partitura. Nada disso. Uma furiosa colisão da tríade
tônica saía do silêncio e, de repente, sem pausa, a primeira exposição do
primeiro assunto – amargo, dominador, áspero, rouco e, curiosamente, belo – com
seu impressionante choque contra o elétrico dó sustenido. A carnificina
começava cedo; estávamos ainda apenas no sétimo compasso. No 13º e 14º, o
incomparável rolar da escala em mi bemol – e o que se seguia era tudo que já
havia sido grande estilo, talvez tudo que "será "dito, sobre
como fazer música em grande estilo.
Tudo que se fez depois, inclusive por
Beethoven, foi à luz daquele exemplo perfeito. Cada compasso da música moderna
honesta tem uma dívida de gratidão para com aquele primeiro movimento. O resto
da Heróica é beethovenês, mas não a sua quintessência. Diz a lenda que a marcha
fúnebre só foi incluída por que era uma época de morticínios por atacado, e
marchas fúnebres estavam em moda. Sem dúvida, aquela platéia da estréia em
Viena, chocada e confusa pelos sucessivos desafios do primeiro movimento, deve
ter ficado grata pela lúgubre melodia. Mas, e o "scherzo"? Outra
perversa investida contra o pobre Haydn! Dois gigantes em luta diante de uma
orquestra de anões soprando como loucos. Não admira que um sincero vienense
gritasse das galerias: “Eu pagaria mais um "kreutzer "se
esta coisa parasse!”. Bem, finalmente parou e então veio algo mais
tranqüilizador – um tema com variações. Todos em Viena conheciam e adoravam os
temas com variações de Beethoven. Ele era, de fato, o mestre dos temas com variações.
Mas havia um coringa entre as cartas. As variações ficaram mais e mais
complexas e surpreendentes. Coisas estranhas começaram a acontecer e aqueles
exercícios tradicionalmente educados tornaram-se tempestuosos, temperamentais,
cacofônicos e trágicos. No final, um áspero e exigente tumulto de acordes – era
a "Sinfonia em Dó Menor" projetando a sua sombra. Deve ter sido uma
grande noite em Viena. Mas, talvez, não para os próprios vienenses. Eles tinham
ido ouvir “uma nova sinfonia em ré sustenido” (sic!). E o que encontraram
no "Theater-an-der-Wien "foi uma revolução.– 1926-
HL Mencken - Crítico e jornalista americano - 1880-1950
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Façam parte desta revolução. Vamos ouvir esta engenhosa obra numa execução memorável de Gunter Wand
Caro Edgard
ResponderExcluirMagnífico artigo do crítico Mencken sob o estímulo e o vigor expansivo da 'Heroica', essa obra de arte, marco absoluto na evolução da música ocidental, quando Beethoven toma para si o cajado de profeta, antecipando as futuras revoluções artísticas e sociais que haviam de efervescer na Europa. E nessa sinfonia há um símbolo poderoso: o homem do povo soerguendo-se de um peso de séculos de servidão, a rugir a sua individualidade na batalha contra a aristocracia. Nesse sentido, a 'Heroica', seguindo a Revolução Francesa daqueles dias, foi o maior grito de independência do artista enquanto indivíduo independente dos favores da nobreza. Portanto, água divisora da música - artistica, filosofica e socialmente.
Após o gênio de Bonn, a música no ocidente iniciou o seu declínio, lentamente. Richard Wagner, em um de seus ensaios sobre o mestre, corrobora essa afirmativa.
A genial sinfonia 'Eroica' foi o início dessa fase grandiosa, seguida por outras obras não menos revolucionárias: algumas sonatas para piano (Appassionata, e depois a Hammerklavier), pelos quartetos Razumovsky e, sobretudo, os movimentos primeiro e quarto da Sétima Sinfonia, ápices da ousadia e da originalidade, arte suprema nunca mais suplantada pela posteridade. Isso sem falar na profundidade mística da última fase, em especial o Quarteto Op.131, que contém a filosofia mais elevada já colocada em música por nossa civilização.
Agradecemos a você e ao Caldonazzo por compartilhar esse excelente texto de Mencken, estimulante acima de tudo, e para ser lido ao som da Terceira Sinfonia, dita a 'Heroica'. Vida longa à grandiosidade de Ludwig van Beethoven!
Abraço
do Ailton
Simplesmente PERFEITO!
ResponderExcluirMeu grande amigo, ficou muito legal o texto no blog. Suas palavras e o comentário de Ailrton enriqueceram ainda mais, assim como sua escolha das fotos. Agradeço as gentis palavras. Você sabe que é sempre um enorme prazer recebe-lo na minha "caverna", aprendo muito todas as vezes que me dá a honra de sua visita. Abraço.
ResponderExcluirMeu grande amigo, ficou muito legal o texto no blog. Suas palavras e o comentário de Ailrton enriqueceram ainda mais, assim como sua escolha das fotos. Agradeço as gentis palavras. Você sabe que é sempre um enorme prazer recebe-lo na minha "caverna", aprendo muito todas as vezes que me dá a honra de sua visita. Abraço.
ResponderExcluirQue maravilha de leitura proposta pelo meu grande professor Flavio Caldonazzo! Sublime!
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